Vem, Espírito Santo, e renova a face da Terra
(cf. Sl 104, 30)
No meio do Inverno, descobri dentro de mim um Verão invencível.” Albert Camus, o filósofo francês, escreveu estas palavras inspiradoras num pequeno ensaio (Regresso a Tipasa, 1954), cerca de sete anos depois de ter publicado a sua extraordinária obra, ‘A Peste’, que capta de uma forma expressiva o sentido profundo do Inverno que vivemos como comunidade global ao longo dos últimos meses. Situado na cidade argelina de Oran, o romance descreve um cenário assustadoramente semelhante ao que vivemos recentemente: uma população intensamente dedicada ao trabalho numa cidade sem árvores ou jardins, onde não se prestava atenção suficiente aos doentes; tentativas iniciais por parte das autoridades civis para esconder as suspeitas emergentes; a indiferença precoce das pessoas, dando gradualmente lugar ao pavor e ao isolamento à medida que a doença se espalha sem parar; a insuficiência dos recursos médicos, a extraordinária dedicação de um médico e a generosidade dos voluntários; a exploração da crise por parte de um empresário em proveito próprio; a busca frenética de um antídoto até que a peste acabe por desaparecer e as pessoas retomem lentamente a vida normal. O romance conclui com um aviso severo sobre a necessidade de tomar medidas adequadas para evitar uma epidemia semelhante no futuro.
Nas últimas semanas, a nossa própria atitude em relação ao Covid-19 passou da indiferença casual perante a notícia de uma ameaça distante para o medo e o choque perante a percepção da presença de uma realidade aterradora à nossa própria porta. A frustração inicial, com a restrição dos nossos movimentos e a perturbação dos nossos horários, tem vindo gradualmente a tornar-se insignificante diante do sofrimento e da morte de um número cada vez maior de pessoas em todo o mundo, entre elas confrades, amigos e talvez até membros da nossa própria família. Desconectados do nosso ministério normal, muitos de nós, sacerdotes, não conseguimos oferecer esperança às comunidades que servimos, conforto aos doentes e aos moribundos, ou consolo aos que estão de luto, a não ser por meios electrónicos distantes. Num silêncio a que não estamos habituados, procurámos inspiração e sentido pessoais e encontrámos consolo e força em palavras como as do P. Francisco Libermann ao seu irmão, Samson, médico, num momento de crise pessoal: ‘Deus está convosco, contai com Ele; Ele disse aos seus discípulos: “Eu estarei convosco na tribulação”. Nestes tempos de dor e angústia parece que Deus se distanciou, mas é nestes momentos que Ele é o mais próximo, que Ele mais nos ama e nos dá as suas maiores graças. Acontece muitas vezes que, quando tudo parece sem esperança, Deus se mostra e o sol aparece no horizonte após a tempestade. Coragem, confiança, amor… “ [N.D. XII, 187-188].
Mas, tal como Camus, também nós vislumbrámos o invencível Verão inato na nossa humanidade comum. Apesar dos incidentes isolados de egoísmo, exploração e discriminação racial, assistimos à incrível generosidade de inúmeros médicos, enfermeiros e outro pessoal de saúde que se entregaram totalmente, vários à custa das suas próprias vidas, ao cuidado dos seus irmãos e irmãs; à dedicação desinteressada das autoridades civis, dos trabalhadores da higiene pública, dos transportes públicos, dos supermercados e dos empregados domésticos que, de boa vontade, puseram em risco o seu próprio bem-estar para assegurar a disponibilidade de serviços e fornecimentos essenciais nestes tempos sem precedentes. Testemunhámos a extraordinária criatividade e desenvoltura do espírito humano enquanto designers de moda, empresas de brinquedos, destilarias e fabricantes de equipamento desportivo, para citar apenas alguns, puseram à disposição e adaptaram as suas instalações para produzir vestuário de protecção e equipamento médico para os trabalhadores da linha da frente. E enquanto cidadãos comuns criaram comunidades virtuais através da Internet a fim de mobilizar esforços para chegar aos idosos, aos doentes e aos sem-abrigo, ou simplesmente reunidos nas suas varandas isoladas todas as noites para sustentar a esperança através do canto e da música. Uma memória que perdurará por muitos anos será a de um antigo veterano de guerra de 99 anos em Inglaterra, que começou a angariar dinheiro para os serviços de saúde simplesmente dando dolorosas voltas ao seu jardim com a ajuda do seu andarilho!
Mais importante ainda, porém, este tem sido para nós um tempo de discernimento e descoberta, uma vez que a actual pandemia nos distanciou daquilo que consideramos ser uma vida normal e nos forçou a um espaço com o qual não estamos familiarizados. Encontrámo-nos numa solidariedade inesperada com aqueles que têm de viver diariamente com medo, vulnerabilidade e incerteza quanto ao que o amanhã trará: vítimas inocentes da guerra, refugiados e migrantes expulsos da sua pátria, os pobres e os sem-abrigo.
Num mundo em que a autonomia pessoal é tão valorizada, chegámos à conclusão de que dependemos muito uns dos outros, que os nossos destinos estão intrinsecamente interligados e que damos verdadeiro sentido à nossa liberdade pessoal quando nos sacrificamos voluntariamente no interesse do bem comum, quando restringimos as nossas vidas para que os outros possam viver. Em última análise, é a nossa vulnerabilidade comum que nos liga enquanto família humana em todo o mundo, para além das distinções raciais, sociais, económicas e religiosas, e só partilhando os nossos recursos para além das fronteiras pessoais, grupais e mesmo nacionais é que podemos assegurar o nosso futuro comum. Chegámos também à conclusão de que dependemos dos trabalhadores mais mal pagos da nossa sociedade – porteiros, empregados de mercearia, motoristas de entregas e prestadores de cuidados, por exemplo – que são frequentemente ignorados numa sociedade em que a identidade e o valor pessoal estão ligados à realização e à posição. Os efeitos devastadores do vírus nas camadas mais pobres da comunidade puseram mais uma vez em evidência a realidade da desigualdade no nosso mundo e mostraram-nos que os cuidados de saúde adequados não podem ser simplesmente uma prerrogativa dos poucos privilegiados. A constatação de que o Covid-19 é apenas um dos vários vírus destruidores que resultaram da invasão humana de habitats animais até agora protegidos, muitas vezes para explorar recursos minerais, madeireiros e petrolíferos, trouxe-nos de uma forma muito realista o facto de que “tudo está interligado” e que precisamos de desenvolver “uma espiritualidade de solidariedade global” (Laudato Sì, 240).
Iniciativas colectivas sem precedentes a nível local, nacional e internacional para combater a actual pandemia mostraram-nos que é possível uma mudança significativa se houver vontade política para abordar questões vitais na nossa sociedade global. “O mundo que emerge disto não pode assemelhar-se ao antigo”, escreveu o colunista do New York Times, Roger Cohen. Juntos vislumbramos a possibilidade de um novo Verão em que as vidas humanas tenham prioridade sobre o crescimento económico, em que os países se reúnam em acções multilaterais para ajudar os mais fracos e para combater a catástrofe ambiental e a desigualdade social. Ao reunirmo-nos em oração durante as próximas semanas com Maria e os apóstolos no Cenáculo, congregados pela nossa amizade com Jesus e pela consciência dos nossos medos e vulnerabilidade, rezemos pela vinda do Espírito Santo, verdadeira fonte do Verão invencível no nosso meio, para que, através do testemunho das nossas vidas e da nossa fidelidade ao carisma dos nossos Fundadores, possamos ser participantes activos na obra do Espírito de renovação da face da terra.
John Fogarty, CSSp.
Superior General