O P. João Dimba nasceu em Moçambique, em 1969. Com a guerra civil, como outros milhões de moçambicanos, viu-se obrigado a fugir do país. Foi num campo de refugiados no Malawi que conheceu os espiritanos e foi atraído pelo seu estilo de vida simples e próximo dos mais pobres.
Hoje é espiritano e reconhece que a sua experiência como refugiado o ajuda a viver a missão em contexto tão inter-cultural. Com a morte do P. José Manuel Sabença, em dezembro de 2016, foi convidado a completar a equipa do Conselho Geral da Congregação. Partilha connosco um pouco da sua vida e missão.
Antes dos espiritanos chegarem a Moçambique, um moçambicano chegou até aos espiritanos. Como é que isso aconteceu?
Quando era miúdo tinha a ideia de ser padre. Na nossa região, no Tete, os padres que aí trabalhavam eram jesuítas. Não sabia ainda bem a diferença entre jesuítas ou diocesanos… padre era padre.
Quando fugi para o Malawi, como tantos moçambicanos, eu encontrei aí os espiritanos, especialmente um chamado Conor Kennedy, que trabalhava nos campos de refugiados, servindo-os com grande interesse e caridade.
Só consegui reencontrar a minha família num campo, com a ajuda do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, três anos depois. Estive muito tempo só, fazendo algum trabalho para conseguir comida e o que vestir. Uma das coisas em que procurei investir foi o estudo da língua inglesa. Como tinha o sonho de ser padre, isso era essencial. Alguns malawianos que conheci apresentaram-me o espiritano P. Kennedy, que ajudava os refugiados. Fui ter com ele para ajuda com os estudos, mantimentos e agasalhos. Eu também ajudava numa escola secundária dos irmãos maristas que ainda hoje continuam a contribuir para a formação da juventude, com grandes escolas de qualidade no Malawi. Durante as férias, eu ajudava a limpar as salas e organizar a biblioteca. Com isso ganhava algum dinheiro e, às vezes, livros antigos de inglês, com que ia aprendendo a língua. Depois fui para uma escola que o P. Kennedy fundou e que continua a funcionar até agora. Ele deixava-me participar nas aulas e aprender o inglês básico. Também me possibilitou fazer um curso à distância, com ajuda de livros e outro material. Dois ou três anos depois, já dominava a língua e comecei a trabalhar no campo de refugiados, ajudando o “Conselho Universo”, uma organização fundada por um espiritano irlandês, que tinha projetos de construção de clínicas, escolas, poços e outras estruturas.
O meu grande objetivo ao aprender o inglês era para ser padre. Mas fui percebendo as várias famílias religiosas e missionárias, para além dos diocesanos. Fui vendo a diferença e senti-me atraído a juntar-me a uma congregação religiosa missionária. E vendo a simplicidade, a dedicação e o amor do P. Kennedy pelo povo, pedi para me juntar à Congregação do Espírito Santo. Em 1991, fui enviado para a África do Sul para fazer os primeiros passos da minha formação: aspirantado, postulantado e noviciado. Depois de dois anos de filosofia, fui estudar teologia em Nairobi, no Quénia. Passava as férias grandes em missão no Uganda e Tanzânia, onde pude também aprender o Swaili. Depois fiz o estágio missionário na África do Sul, na paróquia de Clermont, onde tinha trabalhado o P. José Sabença, antes de ser transferido para Portugal. Ali, continuamos o trabalho nos hostels. Fiz os votos perpétuos em 1999, em Bethlehem, África do Sul. Terminei os estudos de teologia em 2001. Como diácono, trabalhei na Zâmbia, numa missão onde trabalham os espiritanos, perto de Livingstone.
A minha ordenação foi no Malawi, em maio de 2002. Foi numa paróquia onde o padre Kennedy estava a trabalhar, perto da fronteira. Assim, foi possível para a minha família particiar. Os jesuítas ofereceram o transporte, em camião, para 65 pessoas da minha comunidade cristã em Moçambique. Também vieram muitas pessoas do Malawi. Foi lindo. Muito lindo. Um momento muito emocionante.
Durante a tua formação, assististe ao fim da guerra em Moçambique, que vitimou e deslocou milhões de pessoas, e ao início da missão espiritana naquele país lusófono. Como sentiste esta evolução?
Quando fugimos para o Malawi, não havia espiritanos em Moçambique. Isso aconteceu depois, em 1994. Graças a Deus que a paz chegou, com a mediação da Comunidade de Sant’ Egídio que este ano celebraram os 50 anos. O P. Kennedy foi também muito ativo na procura de diálogo entre a RENAMO e a FRELIMO, na região de Tete. Ajudou também muito na repatriação dos refugiados.
Essa guerra foi uma grande crise. Começou logo depois da independência, em 25 de junho de 1975. Durou quase 17 anos. Se juntarmos a Guerra pela independência, então são 27 anos. Um longo tempo de destruição. Fez parar o desenvolvimento e causou muitos deslocados para os países vizinho. Foi duro e teve consequencias. A ONU ajudou nos campos de refugiados, com escolas, hospitais… mas a maioria dos jovens da minha idade perderam a possibilidade de estudar. Foi uma grande tristeza. Muitos morreram… colegas, familiares, professores…
Quando os espiritanos chegaram a Moçambique, eu já era membro da família. E pude seguir de perto a evolução da nossa missão no meu país. Começaram em Netia e depois para Nampula e Itoculo. De netia a Nampula, depois Itoculo. Mais a sul em Chimoio, Catandica. Agora estamos também na Beira, para a formação, mas também temos uma paróquia pequena. O nosso trabalho é muito apreciado pela igreja local em Moçambique. Graças a Deus acabo de visitar as missões. Foi a primeira vez que fui lá como animador da congregação. Foi muito emocionante.
vendo a simplicidade, a dedicação e o amor do P. Kennedy pelo povo, pedi para me juntar à Congregação do Espírito Santo
Depois da tua ordenação, foste enviado para o Malawi, agora já não como refugiado, mas como missionário. Como viveste esta nova missão?
A minha nomeação missionária era para o Zimbabwe. Mas como, no Malawi, houve uma crise de pessoal, porque vários confrades deixaram o país, desestabilizando a dinâmica missionária, o superior do grupo pediu ao superior geral para mudar a minha nomeação para aquele país. Assim aconteceu. Trabalhei na missão de Thunga, na Diocese de Blantyre durante 7 meses. Depois houve novamente falta de pessoal na área de formação, e pediram-me para ajudar no postulantado. Também fui animador vocacional e conselheiro para a formação na região da África Austral (SCAF). Três anos depois, fui eleito superior da SCAF. Isso ajudou-me a compreender melhor a dinâmica da missão e da igreja local naqueles países. Como formador, pude também conhecer melhor os jovens, tanto nativos como os que vinham de fora.
Sou o único espiritano Moçambicano. Agora temos esperança que outros se sigam. Temos dois a fazer filosofia em Angola e dois que vão fazer filosofia em Moçambique.
Servindo naqueles 5 países, foi uma grande experiência intercultural. Penso que a experiência como refugiado me ajudou a não ter receio de lidar com outras culturas, a compreender a diversidade cultural. Também a descolação para um país novo… toda a ansiedade… tudo isso me preparou para a vida espiritana, de uma forma profunda. E posso compreender a experiência do missionário que sai da sua terra para servir o povo numa outra terra, com o choque cultural, os primeiros passos a lidar com o povo, aprender a língua… O trabalho como superior da SCAF foi uma experiência muito rica e dou graças a Deus por me conceder essa possibilidade de servir os confrades. Foi interessante trabalhar com o padre Kennedy, aquele que me deu o primeiro agasalho no campo de refugiados. Quando fui eleito em 2009, ele foi o ecónomo da circunscrição. E trabalhamos em equipa. Faleceu em 2011. Ele dizia: o João é um caso particular e estranho: “Era refugiado, agora é o meu superior”. Foi muito significativo poder cuidar daquele que tinha cuidado de mim.
Como superior da SCAF, foi muito significativo poder cuidar daquele que tinha cuidado de mim no campo de refugiados
Da animação vocacional à formação, da animação espiritual à administração do grupo espiritano: muita missão te passou pelas mãos e pelo coração. Como vês o futuro da Igreja e da missão espiritana naquela região do Sul de África onde trabalhaste?
Foram muitos anos (32) naquela região de África. Vi muita coisa mudar… a situação política de muitos daqueles países. Vi o Zimbabwe, que era uma grande nação economicamente, cair por causa dos problemas de liderança. Vi a Zâmbia sofrer economicamente, e que agora está a recuperar. Vi a transição de um partido único para a democracia no Malawi. Vi Moçambique passar da guerra para a paz. Também assisti às mudanças na África do Sul, com a saída da prisão do Nelson Mandela e a transição para a nova nação. Vi a esperança daquela nação tão diversa e tão grande. Vi também as transições na Zwazilândia, Lesotho, Botswana… E isto é a atmosfera em que a Igreja está funcionando, procurando engajar-se e ser uma voz profética em toda a África austral, assistindo essa transição dos governos autocráticos para a democracia, mas também na luta contra a pobreza. A Igreja foi também uma grande influência na educação. Em todos esses países a presença da Igreja foi muito marcante.
Mas os desafios para a Igreja são grandes. Depois de um século de evangelização, esperaríamos que os valores cristãos estivessem bem aprofundados. Mas há ainda sinais de que o povo vive em dois mundos: o mundo cultural e o mundo cristão. Não é que ser cristão seja contra a cultura, mas há muito conflito nos costumes que estão contra a vida humana e os direitos humanos. Há também o medo que se mete no povo. Considero que não experimentam ainda a libertação do Evangelho.
As conferências episcopais da região estão-se focando na nova evangelização. Isto implica avaliar o que aconteceu na primeira evangelização, com os seus pontos fortes e suas fraquezas, e o que está ainda por fazer. E vejo que a Congregação ainda tem um papel muito importante na evangelização que, de certa maneira, é como começar de novo. O desafio das seitas é enorme, tanto na África Austral como em grande parte do continente. Proclamam “o evangelho da prosperidade” e trazem grande confusão.
É verdade que o nosso carisma é primeira evangelização. Mas se o que pregamos se desvirtuou, temos de regressar e fazer de uma maneira nova e melhor. Porque a situação que se encontra agora é um povo como ovelhas sem pastor. O Espiritano tem um grande papel na 2ª evangelização da África Austral, e de toda a África.
Na tua vida missionária, quais os maiores desafios que enfrentas, e onde encontras energia para os superar?
A partir da minha experiência de refugiado, e tudo o que eu passei, tanto com a formação religiosa e com a minha experiência missionária, eu acredito que cada pessoa deve ter uma espiritualidade na vida. Como espiritanos podemos falar de uma espiritualidade comum da congregação, mas a vida exige que cada um tenha, individualmente, uma espiritualidade, de valores que definam a sua vida. E isto é que dirige a minha vida. Na minha caminhada para a vida religiosa, consegui assumir, acolher e assimilar valores e uma espiritualidade.
Ela já tinha começado nos primeiros dias da caminhada cristã… olhando o meu avô e o hábito de oração na família… e foi evoluíndo, tornando-se uma referência, em tempos de crise e em tempos de alegria. E isto é válido para o missionário como para qualquer pessoa.
No meu refletir sempre penso na vida de Nossa Senhora. O pouco que se escreveu no Evangelho a seu respeito sempre me inspirou. Inspira-me a sua hospitalidade: não apenas acolher o outro, mas acolher também os momentos difíceis e alegrias, pois Deus está sempre presente. Inspira-me a sua fé num Deus, para quem nada é impossível, que tem muitas formas de agir na nossa vida. Inspira-me a sua disponibilidade para que seja feita a Sua vontade. Quando sou transferido de um sítio de que gosto muito para outro, não ofereço resistência.
Inspira-me a sua gratidão. A nossa vida deve ser marcada por esta gratidão, pelos outros, a nossa vida, o trabalho… O magnificat é uma grande lição que podemos partilhar com o povo. Inspira-me a sua reflexão, guardando tudo no seu coração. Quando as coisas acontecem na vida, antes de reagir, importa reflectir… onde está Deus em tudo isto? Inspira-me a sua generosidade, e a aceitação das circunstâncias… a espada que lhe trespassará o coração. Não podemos fugir das adversidades e problemas… mas confrontar, contando com a graça de Deus e com a ajuda dos outros.
Todas estas coisas ajudaram a formar a minha espiritualidade.
Com a morte do P. Zé Manel, foste convidado a integrar a equipa do Conselho Geral. Como encaraste este novo desafio, e como vês agora a Congregação, a caminho do próximo Capítulo Geral, em 2020?
Primeiro devo dizer que a morte do Zé Manuel foi um momento muito emocional. Conheci-o bem, vivi com ele na África do Sul, ele também me entrevistou pela ocasião da libertação do Nelson Mandela. Gostava do Zé Manuel. Foi um momento muito emocional… pois tratava-se de um grande amigo, um missionário dedicado, um homem com muitas capacidades e competências.
Vim para aqui com a consciência de que não vou substituir o Zé Manel. Vou fazer o que posso, segundo as minhas capacidades.
Vejo isto como uma grande oportunidade de servir os nossos confrades e a Congregação, agora de uma maneiro um pouco mais alargada. É uma oportunidade de aprender e de me familiarizar com esta família tão diversa. É um privilégio. É uma oportunidade de serviço e também me faz crescer, porque os desafios do mundo espiritano sempre vão confrontar o meu mundo interno. E posso amadurecer no meu ser missionário e espiritano. Já sabia que a missão é universal, mas servir aqui é uma oportunidade bem focalizada. Grande riqueza pessoal e espiritualidade. E dou graças a Deus por isso.
O pouco que se escreveu no Evangelho sobre Nossa Senhora sempre me inspirou
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