É o mais jovem Cardeal da Igreja, Missionário Espiritano. Passou uma semana na Casa Geral da Congregação, em Roma, como ‘placa giratória’ de um sem número de encontros, contactos e entrevistas. Longas conversas e celebrações ajudam a construir o perfil de um missionário corajoso e mostram o rosto de um país ainda destroçado por violências que não se sabe quando vão terminar. A visita do Papa a Bangui, a Plataforma Inter Religiosa pela Paz e as múltiplas intervenções em contexto de violência extrema dão esperança e futuro a este povo que habita o coração da África.
Um percurso plural
O Cardeal Dieudonné, Missionário Espiritano, 54 anos, simples e sorridente, apresentou-se como um jovem de Bangassou que cedo entrou nos Seminários da Congregação na RCA. Nos livros e entrevistas, cita sempre o exemplo enorme dos Missionários Espiritanos que marcaram a sua infância, havendo uma referência especial ao P. Leo, holandês, que jogava futebol com eles, um ‘branco diferente’, pois os outros não iam ao bairro nem se misturavam: ‘foi ele que me inspirou a vontade de ser padre como ele’. O P. Leo ensinou-lhe que ser padre não podia ser vocação exclusiva dos jovens das cidades, mas era uma vocação aberta a todos.
Estudaria nos Camarões e no Gabão, antes de ser enviado a Paris para concluir, no Centre Sèvres dos Jesuítas, a sua formação teológica. Foi ordenado Padre em Bangassou em 1998 e os seus primeiros oito anos de Missão aconteceriam em Marselha, na Obra dos Órfãos Aprendizes de Auteuil, apoiando uma paróquia. De regresso à RCA, acabaria por ser eleito, em 2005, Superior dos Espiritanos e em 2009 Administrador da Arquidiocese de Bangui, cargo para que seria nomeado Arcebispo em 2012. Duas grandes surpresas o esperariam – segundo confessa: a visita do Papa em novembro de 2015 para abrir a Porta Santa do Jubileu da Misericórdia e a escolha para Cardeal, anunciada a 9 de outubro de 2016, onde se tornaria o Cardeal mais jovem da Igreja.
Plataforma para a Paz
A República Centro Africana continua a ferro e fogo. Como em todas as guerras, quem sofre é o povo que é morto, torturado, deslocado, abusado. E, claro, a economia é destruída, ficando nas mãos de oportunistas que gerem tráficos de toda a espécie e ganham fortunas à custa da desgraça e da miséria das populações martirizadas. As forças internacionais, enviadas pela ONU e pela União Africana, tentam defender as populações em áreas mais sensíveis, mas não tem sido muito bem-sucedida neste objectivo. A presença de militares portugueses foi elogiada pelo Cardeal.
Em 2013, surge a Plataforma Inter Religiosa para a Paz na RCA. O país estava tomado de assalto por grupos rebeldes, auto-proclamados islâmicos. Semearam o pânico, mataram, destruíram. A própria capital ficou dividida em bairros prós e contra. Os três líderes das grandes Comunidades Religiosas na capital, reuniram-se e decidiram avançar juntos para a reconciliação: o Cardeal Dieudonné, o Iman Omar Kobine Layama e o Pastor Nicolas Gbangou. Abriram uma das páginas mais belas da história recente da RCA, apresentada como exemplo para a África e o resto do mundo.
Conta o Cardeal que quando um muçulmano era morto na capital, a resposta era matar 20 ou 30 cristãos. Com esta Plataforma e, depois, com a visita do Papa, tudo mudou para melhor.
Fizeram inúmeras visitas em todo o país, arriscaram enfrentar estes grupos armados, lançaram iniciativas várias de sensibilização e compromisso pela pacificação, gritaram por apoio à comunidade internacional, amplificando o grito deste povo martirizado por interesses alheios.
O cardeal Dieudonné, figura chave da Plataforma, insiste na importância do trabalhar juntos, apesar das diferenças. Tal opção deu força a esta missão porque gerou confiança no seio das comunidades católicas, islâmicas e protestantes.
‘Milagre’ do Papa Francisco
O Papa Francisco surpreendeu tudo e todos na decisão de se deslocar a uma cidade a arder, Bangui, para ali abrir o Jubileu do Ano da Misericórdia. Viu-se ali um Papa ‘cirúrgico’ nas escolhas de viagens, gestos simbólicos ou metáforas a utilizar. Foi um ‘milagre’, confessa emocionado o Cardeal. Assim, a 30 de novembro de 2015, abriu de par em par a Porta Santa da Catedral de Bangui, lançando um grito à intervenção e ajuda da comunidade internacional para que a estabilidade e a paz regressassem à RCA. O Papa disse: ‘Bangui tornou-se hoje a capital espiritual do mundo. O Ano Santo da Misericórdia chega antes a esta terra, uma terra que sofre há diversos anos a guerra, o ódio, a incompreensão, a falta de paz’. As imagens correram o mundo e a RCA passou a constar no mapa dos países a ser apoiados.
O Papa teve a coragem de ir até ao ‘Km5’, um bairro islâmico radical. Muitos dos muçulmanos apreciaram tanto esta visita que foram atrás do Papa até ao Estádio e participaram na Missa, juntamente com os católicos.
Na sua homilia, o Papa colocou o dedo em várias feridas, pedindo que todos poisassem as armas da morte e apostassem na justiça, no amor e na misericórdia. O Cardeal Dieudonné salienta, desta intervenção do Papa Francisco, a referência ao amor aos inimigos como valor evangélico extremo. Disse o Papa: ‘uma das exigências essenciais da vocação cristã é o amor pelos inimigos, que protege contra a tentação da vingança e contra a espiral das represálias sem fim’.
A ida do Papa ao Km5 abriu um precedente. A partir daí, quando morria algum muçulmano de forma violenta, o Cardeal ia até ao Bairro e os ânimos acalmavam.
Dieudonné não poupa elogios à coragem do Papa, pois uma semana antes da visita havia confrontos directos na capital. ‘mas o Papa teve a coragem de arriscar. A sua visita veio dar esperança. A sua presença confortou e permitiu realizar eleições livres e transparentes, com o povo a votar em paz. Durante seis meses não se ouviram tiros’.
Da violência à calma relativa
Mas, depois destes seis meses de graça, a violência regressou em força com os rebeldes a controlar, novamente o país, situação dramática que se estendeu até ao início de 2021, quando as tropas do governo retomaram as suas posições. Para os rebeldes, só interessam os diamantes, o ouro e o gado…
A Igreja de Nossa Senhora de Fátima, em Bangui, foi palco de um dos atentados mais assassinos desta guerra cruel. Foi a 1 de maio de 2016, festa de S. José Operário. Um bando rebelde atacou a Igreja durante a Missa, disparando sobre os padres e o povo. Mataram um Padre e seis fiéis.
2017 é marcado pelo grande ataque dos rebeldes a Bangassou, terra natal do Cardeal Dieudonné, cujo bispo é D. José Aguirre, um missionário espanhol. Foram muito divulgadas as imagens deste Bispo a acolher na Catedral, famílias muçulmanas. De facto, os rebeldes levavam tudo na frente, sem olhar à religião das pessoas. Assim, as que escaparam foram acolhidas na mesquita e na catedral. O cardeal Dieudonné elogia a enorme coragem do D. José que arriscou a sua vida para salvar vidas…na sua maioria muçulmanas, dando corpo a um diálogo inter religioso muito prático. As tropas internacionais intervieram e acalmaram um pouco a situação.
O ano seguinte, 2018, voltou a ser terrível. Os rebeldes ao governo tomaram de assalto todas as cidades do país fazendo colapsar as estruturas de governo e ordem pública. A situação humanitária tornou-se de uma gravidade extrema e a insegurança era total. Alindao, outra cidade, foi barbaramente tomada de assalto, cerca de 60 pessoas foram massacradas. O Paço Episcopal foi atacado e mataram dois padres. D. Dieudonné deslocou-se a Alindao e, no regresso a Bangui, deu uma conferência de imprensa juntamente com o Iman Layama, começando por gritar: ‘nós não nos podemos calar!’ E, estes dois líderes denunciaram a incapacidade das forças governamentais e dos militares internacionais de pararem com as barbaridades deste grupo armado que age com total impunidade, aterrorizando as populações indefesas. Falaram ainda da desnutrição da população em geral, pedindo apoio urgente da comunidade internacional.
2021 nasceu como um ano mais calmo. Antes de dezembro 2020, confidencia o Cardeal, ¾ do país estava nas mãos dos rebeldes. O Card. Dieudonné respira fundo quando fala daquele 19 de dezembro passado em que um grupo enorme de rebeldes forçou a entrada em Bangui, tendo sido apenas parado à entrada da cidade. Hoje (maio 21) 80% do território está controlado pelo governo! Pode-se circular à vontade em Bangui. Fora é preciso ter cautela porque os rebeldes estão escondidos, mas continuam armados e agora atacam nas estradas e caminhos.
Cardeal Missionário
Num novo livro, coordenado pelo jornalista francês Laurence Desjoyaux (‘Je suis venu vous apporter la Paix’), o Cardeal explica como, com fé, a tentação do desespero dá sempre lugar à esperança. Deus é a fonte da paz. E, sobretudo, há que trabalhar em sintonia com todos quantos querem a paz e o bem estar das pessoas. Diz: ‘Eu não estou só nesta missão: católicos, muçulmanos e protestantes, caminhamos juntos e todos falamos de paz ao povo’. Confrontado com o reconhecimento (ou não) da liderança que esta Plataforma exerce, D. Dieudonné fala por imagens: ‘somos uma espécie de locomotiva que puxa os vagões do comboio na direcção da estação desejada…’.
Dieudonné está contente com o caminho percorrido, embora consciente do muito que está por fazer. Alegra-se com o apoio sempre incondicional do Papa Francisco e com o facto do povo se sentir mais livre e confiante. Considera fundamental o Diálogo Inter-religioso e explica porquê: ‘havia muitos discursos sobre a situação; construímos, a seguir, discursos comunitários (católicos, protestantes, islâmicos); finalmente, sentamo-nos e vamos chegar a um discurso inter religioso’.
As relações dos líderes religiosos com os líderes políticos e militares são sempre difíceis e tensas. Quando se fala de impor a justiça como caminho de paz, é-se mal entendido e mal aceite. Mas há que sentar, dialogar e encontrar caminhos de justiça e paz.
Apelidado num livro como ‘Cardeal Coragem’, D. Dieudonné disse que só correu o risco de ir ao encontro dos rebeldes de mãos livres e vazias porque ‘a coragem abastece-se e fortalece-se na fonte da Fé’. E recorda os telefonemas da mãe a pedir-lhe que não arriscasse, a que ele respondeu: ‘Mãe, eu sou Bispo, esta é a minha Missão. Não me peça para não arriscar, não me acrescente problemas. Antes, reze. Se eu morrer, sei porque é que deixei esta vida!’.
Quando o confrontaram com o facto de ele estar num pedestal diante da comunidade internacional, a resposta dele é outra: ‘sou pobre, vindo de um país pobre. Não tenho motorista, ninguém me abre e fecha portas, não deixo que a vaidade tome conta de mim. Se eu aceitasse, o governo tinha-me dado carro e guarda costas. Nunca aceitei. Eu fico com o povo. Vêm à minha casa ministros e pobres. Recebo todos. E vou ao encontro de todos, não medindo riscos. Não tenho medo do desafio das periferias. Gosta de lá estar. Como o Papa Francisco diz, somos Igreja em saída’.
Falando da Igreja viva em África, agora a enviar missionários para os velhos continentes, o Cardeal Dieudonné insiste na actualidade da Missão Espiritana: ‘o compromisso com os mais pobres é essencial. É essa ida às periferias que está no coração das minhas opções pastorais’.
Tony Neves, em Roma